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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Nostalgia é o temperozinho


De repente lembrei-me daquela voz doce com a tentativa de me equilibrar, dizendo que as coisas sempre são mais fáceis do que a gente imagina, mas lembro que naquela época as coisas não eram fáceis, por mais que eu tentasse enxergá-las assim, me via caído todos os dias em um poço sem fundo. Era um abismo que eu mesmo criava. Gostava disso, de estar amargo às vezes, acreditando que o mundo todo estava contra mim. Que nada me satisfazia e que nunca conseguiria encontrar alguém que amasse de verdade.
Ele estava ali o tempo todo, com aqueles olhos de gato manso, daqueles que te olham fechando os olhos. Tão mole e tão inconsciente de sono que me hipnotizava. Contava histórias e às vezes me fazia dormir com elas. Mostrava todos os tipos de música que nunca imaginaria escutar um dia, e hoje é o que mais escuto.
Antes de cairmos no Martini com gelo no boteco de azulejos azuis, com aqueles bancos altos que eu nunca conseguira sentar e ao mesmo tempo relar meus pés no chão; naquele lugar aonde já chegávamos passados, e mesmo assim, continuávamos a conversar coisas e planejar coisas que hoje nem consigo me lembrar; antes de nesse mesmo boteco, observar seus movimentos e como seus lábios se mexiam, e como seus olhos ficavam ainda mais bonitos com aquela luz vermelha daquele refletor... Lembro que a primeira vez que ousei olhar no fundo dos seus olhos, também havia uma luz neles, uma daquelas vagabundas, que piscam a noite inteira. Ele lia Alice no País das Maravilhas no chão da pior praça da cidade. Eu ficava louco. Fascinado com aquela história. Nunca ninguém havia me contado histórias do jeito que ele contava.
Sentia-me uma criança com meus dezessete anos, matando aula para brincar a noite escondido da minha mãe, nos brinquedos que não subia há anos. E nos divertíamos tanto. Gritávamos.
Ele me fez enxergar o mundo que estava em minhas mãos e me fez acreditar que tudo não passa de um sonho. E uma coisa aprendi com isso: que nos sonhos podemos tudo, e, eles às vezes acontecem de forma que não queremos, mas com um pouco de mudança na nossa mente, um pouco de desejo, levamos o sonho para outro estágio, assim, tornamos ele, outra coisa. Criamos outra história.
Nossas longas conversas e fantasias eram tão intensas, que no ônibus a caminho de casa, meu caderno ia enchendo de palavras, de histórias inventadas, mas o movimento do ônibus me fez escrever rabiscos; e às vezes quando tentava ler novamente, não entendia nada, aqueles contos se transformaram em garatujas de criança. Acho que era o que estava sendo mesmo, uma criança adulta querendo enxergar o mundo adulto com um pouco de infantilidade.
Confesso que foi a melhor época da minha vida, apesar de não ser livre totalmente - e sempre conversávamos sobre a liberdade que teríamos um dia - fazia loucuras que nunca mais consegui fazer e essa tal liberdade só apareceu nos sonhos, porque a gente sempre se prende alguma outra coisa.
Conheci o mundo através dos óculos dele e me encontrei tão amarelo, que nada que fosse dessa cor podia ser mais que eu.
Um dia choveu muito, estávamos ilhados em um toldo na rua. Então fomos a uma banca que sempre comprávamos cigarros e sorvetes de uva, eles vendiam guarda-chuvas, compramos um e acabamos com todo o dinheiro que tínhamos. Só nos restaram a garrafa de Martini e o guarda-chuva. Nós dois. Na rua, feito lobos uivando com nossas cantorias e promessas malucas de uma amizade eterna.
Hoje já não gosto tanto dos abismos, nem abro espaço no meu mundo para poder criá-los. Aliás, até ouso pensar nele às vezes, mas só quando é para me levar para o lugar onde mais gosto de estar. Aquele lugar que ele me incentivou tantas vezes, daquele que provei algumas e nunca mais consegui parar de provar. Agora vivo a procura disso, também vivo encontrando. Ele me ensinou a me atirar nas paixões e me entregar como jamais deve ter se entregado há ninguém.

Não sei se foi falha minha, mas se nunca falei nada é porque acreditava que ele já sabia quê: se atirar num abismo sozinho não é a mesma coisa que estar num rio sendo levado pela correnteza.

Um comentário:

  1. Fagulhas de passado adormecidas nos presentes segundo, ainda vibram tudo o que tenho por dentro: Cheiro de alecrim.

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