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sexta-feira, 7 de junho de 2013

O louco do tarô

Peregrino no encanto abominável das formas,
mensageiro do essencial de mim mesmo,
desdenhando os sonhos do pensar
faço de todos os caminhos, meu caminho.
Folha seca que num suspiro do tempo
vem conceder esperança às fogueiras;
calafrio que torna verde os lábios das fêmeas
e violeta o membro que penetra seus mistérios.
Som que se desliza entre o badalo e o sino.
Serpente que rasteja na rocha
sem deixar rastro,
mistério insondável da primeira origem,
sonho que sonha,
abundância invisível,
todas as minhas horas são sempre hoje.

Vou ao essencial, ao centro do mundo,
e entre o vazio que separa os números,
me expando até as dez direções
para encontrar meu significado profundo em qualquer lugar.
Deixo sempre que as circunstâncias decidam
porque sei que sou eu mesmo quem as cria.

Me apodero das mil coisas ao me entregar a elas,
e quando caminho aqui, também faço isso em outros mundos.
Sem princípio nem fim, mais velho que a noite e o dia,
mais jovem que o menino recém nascido pelo cosmos,
mais brilhante que a luz e mais escuro que um abismo.
Sou o fogo que arde no centro da mente.
Quem se atreve a me definir?
Com meus sapatos vermelhos borro todas as fronteiras.
Não me enquisto, não me escondo, não me fujo, não me diminuo.

Como as nuvens, sem cessar, me transformo.
Quando acaba o sonho da separação
sou o mesmo de antes e o mesmo de depois.

Sou a palavra secreta guardada em cada pedra.

Vou ao germe, a espiral do crescimento
na dança de pelos do organismo que declina.
Eixo invisível de tudo que gira,
sou a loucura sentada na língua de um sábio,
a vítima no lobo, o ladrão no juiz.

Fujo das palavras porque são só memórias,
ainda que meu silêncio as sustentem.

Sou o conteúdo que escapa das formas,
o terreno onde germinam as estrelas,
a indizível Verdadeira raiz da Beleza,
resplendor que denuncia a minha ação invisível
agregando à demência do impensável;
ao objeto que esconde cada palavra
e a palavra que esconde cada objeto.

Sou o voo antes do nascimento do pássaro,
a música sem músico, o tempo sem arquiteto,
o assobio que precede a espada,
o coro celestial dos vermes
já inscrito no corpo que nasce,
os gestos ordenados no espaço futuro
criando os atalhos por onde passará o dançante,
a caída que há de dar significado ao muro,
o beijo que faz nascer todos os lábios.

Em meu abismal, a energia do pensamento perde limites.
Diante de qualquer proposição, abro o leque
dos múltiplos contrários,
o furacão que passeia entre as tumbas,
o pântano onde se fundem os cimentos da razão
para produzir a flor indiferente
que se entrega a arriscada alegria do momento,
surgindo como um sapo voador de um lago infinito.

Às vezes, me seguem fugazes recordações que deixei para trás, incessantes em mim,
por não ter perdido a primeira inocência,
ali onde não existem qualidades nem reputações nem leis nem nome nem sexo nem idade nem país nem tradição
nem história.

Sem me preocupar, deixo entrar em mim mesmo
os inumeravéis aspectos do meu ser.
Nado contra a corrente até chegar a fonte
onde meu último passo se submerge ao começo.
Sem rechaçar a complexidade voraz do mundo,
no meio das dez mil coisas,
sou um eixo único.
Diante do que brilha, me estendo como sombra.
Os abismos sombrios me convertem em vagalume.
Espectador em chamas, desintegro as estruturas da ilusão,
observando o mundo como um espetáculo vazio.
Aquilo que busco encontrei faz mil anos.
A pressa, como um cachorro fiel, me persegue.
Espaço é meu corpo infinito e Tempo o que a mim, me sucede.

Dissolvo na consciência o digno Criador.
O universo, então, me aparece como um filho único.
Olho a todos os seres e as coisas com amor de pai
e é intensa minha ternura pela existência efêmera.
Nada começa, nada termina, nada nasce, nada morre.
Sei que ao lançar uma pedra até o remoto confim
ei de vê-la chegar um dia a palma da minha mão.
Tripulante do sonho, não temo ao despertar.
Não sou peixe envaidecido que ao saltar da água,
se pensa dono do céu.
Reconheço que só sou uma parte ínfima da engrenagem oceânica
e aceito com amor, sacrificar minha figura ilusória
para que o coração da luz se abra em uma rosa de fogo.

Do meu pensamento não fica mais nada que o perfume,
porque as palavras antes que a música, foram aromas
e meus passos, o ritmo bruto da ausência de esquema.
Sou o que sou, amo como amo, desejo o que desejo,
estou onde estou.
Centrado na fonte da vida, sou aquele que nunca dorme,
como uma chama de ouro em um vaso de cristal sem fim.




Alejandro Jodorowsky

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